quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O espantalho: impressões na clínica

O espantalho veio simbolizar um pulsar recente e antigo.
O espantalho se revelou a mim em meio a este conflito que vivo:
o clinicar doente da clínica....

A pedra que tampa o poço
se faz verdade nestes dias enlouquecidos de razão e ciência....
A pedra que tampa o poço faz-se o próprio poço
e esquecemos da água por debaixo da pedra
e a vida passa a ser mais tangenciável, mas vazia.

Assusta-me o que vejo e penso:

no momento de aflição
quando o ser vai em busca de outro ser
para nele despejar seu fragmentado ser
em tentativa instintiva de se recompor,
o vaso que recebe o doente
é um torpe fragmentado e ácido recipiente.
E o ácido recipiente faz-se naquele que o busca
e perde-se em seus próprios medos e anseios.

Lembro-me de Pessoa...

"Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então por que digo eu das cousas: são belas?"


e reflito.....

não vemos o outro
vemos nós mesmos naquele que nos busca
e somos nós mesmos no que julgamos do outro
como pode ser assim na clínica?
Não pode!

Não pode
porque se pudesse
seriamos nós a fazer no outro
nossos próprios conflitos, sem ver, sem sentir;
seriamos cegos de branco
numa cegueira camuflada de ciência
a fugirmos de nós mesmos.

E ainda assim
é isso que vejo
e é isso que nos circula.
Uma atividade diária
embebida em empirismo e estatística
que nega a intuição
que nega o sentimento
que nega o ser no humano
que nega o humanismo do ser
que se esqueceu do coelho
que ao ver o coelho, vê um pano de fundo branco a conter um relógio.
Somos espantalhos!

Somos espantalhos
a não sentir
a fazer-nos presentes sem sermos mais que palha
aprisionados em torpes botões de camisa
sem poder sorrir
a amedrontar
a poder ser
e nunca vir a ser.
Caminhamos para o vazio do esquecer o subjacente
navegamos por tanto
e passamos a crer que a viagem encerra-se em si mesma.

Não sentimos
negamos o sentir
não ousamos sentir...

Em que medo sincero
em que dor real
terá se perdido
a sensação de estarmos a conversar com o abismo e a escutá-lo?

Em que canto errático de nós mesmos
teremos ficado?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Pedro Shiozawa

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