Assim como tantos outros, a cena inicial deste filme, busca de maneira quase caricata contextualizar determinado conjunto de cores, de falas, de cenários, de modo a fazer com que, a quebra subseqüentemente produzida pela entrada de algum personagem ou objeto fatídico se faça notar de maneira mais drástica: o que vemos é o contraste.
Assim como no presente filme, tantos outros apresentam o mesmo recurso. Desta maneira tem sido uma infinidade de filmes, de livros, de cenas, de músicas. Sempre a buscar no contraste, o impacto. Citamos a transformação do Sr. Anderson à figura mitológica de Neo em Matrix (Watchonscki brother, 1999), a metamorfose de Anakin Skywalker em um cavaleiro Jedi em Star Wars episódio IV (G. Lucas, 2000), os traços cubistas e doces de Picasso na Flor que se perde no horror do Massacre de Guernica (Picasso, 1966), ou ainda o dueto angelical entre um tenor e um baixo que culminam com a explosão de um coro de 100 vozes na 9º Sinfonia do mestre Beethoven.
Nossos sentidos trabalham com opostos, de modo que o branco existe, pois existe o negro; não contemplamos de costume a coisa sem que tenhamos projeção mental da não-coisa. A identificação inicial de contrastes torna qualquer objeto de interesse mais tangível, menos remoto; a arte mais abstrata, ganha concretude se comparada: os traços de Magritte ganham mais sentido se vistos à sombra do mais concreto Dali.
Mas não fujamos por demais do tema central neste momento: a Alice, esta que exerce sobre todos os demais papéis, o de heroína. J Campbell com suas infinitas possibilidades já definiu o herói como aquele ser capaz da submissão autoconquistada, aquele que vinga na árdua batalha contra as impenetráveis entranhas próprias. Alice não foi outra que são o personagem de quem falou o mitologista. Imersa nas profundezas do tempo, nas tortuosas incertezas de nossas próprias impenetráveis entranhas, iniciou sua jornada, ao seguir o coelho branco, de quem nos ocuparemos a seu momento. Por ora fiquemos com a jovem protagonista a cair no buraco sob a árvore no alto da colina.
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a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias
inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.
(C. Drummond de Andrade)
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No ponto simbólico de contato com o transcendente, no cume do fluir entre o céu e a terra, no alto da colina havia uma árvore e nela a possibilidade da jornada. E qual não terá sido maior jornada do que a empreendida por aqueles que perderam a unidade transcendente do paraíso para alcançar a dor do tempo e o suor do espaço? E tudo pela maçã tentadora de ter conhecido, pela possibilidade do poder vir a ser, mas vir a ser o quê? Reflexo, quem sabe.
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E agora, José?
(...)
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora ?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José !
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José !
José, pra onde ?
(C. Drummond de Andrade)
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Tendo iniciado sua jornada sem saber que a jornada iniciava, a jovem Alice adentrou em terreno já antigo, no espaço secreto onde outrora transitava livremente e o terreno antigo pode ser palco para a fatídica viagem. No cume incerto do topo do mundo a tangenciar a além do mundo, a protagonista pode enfim imergir-se em si mesma e cavalgar os primeiros momentos de sua batalha que, como disse uma paciente minha, haveria de ser marcada por crescimentos e encolhimentos, superações e perdas: remodelação, metamorfose. A Alice que adentrava os negros portões de sua mente marchava ao encontro da libertação de si mesma, rumo ao poder vir a ser algo maior que seu ego. A Alice que se tornava gradativamente Alice viria a matar o dragão, a cobra-alada, mas não sem antes sacrificar-se em prol de algo maior, do transcendente em que, mesmo sem conhecer, acreditava.
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Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
(Fernando Pessoa)
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