Este é um dos mais importantes textos escritos para aqueles que desejem se aprofundar nas inovações e revisões que a Psicologia Arquetípica de James Hillman traz para dentro do campo teórico junguiano.
Santina Rodrigues constrói um minuncioso e preciso percurso que culminou numa nova orientação clínica-teórica do trabalho junguiano , realizado a partir do afastamento da perspectiva simbólica para a dimensão estético-imaginativa como Hillman a propõe e, ainda nos brinda (fato raro na literatura junguiana, pós-junguiana ou arquetípica) com breves cenas clínicas que nos ajudam a melhor compreender como se atualiza este método em nossa realidade cotidiana em nossos consultórios.
Marcus Quintaes
Símbolo, Signo, Imagem. Reflexões de uma clínica imaginal. 80 anos de James Hillman.
Como será que essas três questões se inter-relacionam? Por que escolhi usar o precioso tempo que me cabe esta noite para falar sobre o que imagino possa ser uma clínica imaginal? E por que fiz isso estabelecendo como ponto de partida esses três conceitos? E o que tudo isso teria a ver com James Hillman, afinal?
Hillman, um autor que fez e continua fazendo contribuições instigantes em relação ao texto de Jung, mas que cá entre nós, nos deixa tanto quanto Jung com pouquíssimos estudos de caso propriamente ditos.
Aliás, há pouco mais de uma década Hillman abriu mão de atender, comunicando isso abertamente num congresso internacional, como vocês devem saber! É o mesmo autor, inclusive, que escreveu um livro com um título de arrepiar os cabelos de qualquer crente em psicoterapia, lembram? “Cem anos de psicoterapia e o mundo está cada vez pior” (1995)!
Possivelmente, Hillman está a criticar um jeito de fazer psicoterapia, ou um tipo específico de psicoterapia, isso vocês vão entender melhor lendo o livro. Quero apenas adiantar que mais do que desqualificar a psicoterapia, o que ele propõe é uma revisão de suas bases representacionais. Ele critica acidamente – como lhe é habitual - a terapia como um espaço dedicado à produção incessante de sentidos, que viriam de fora para dentro, dos manuais e dicionários de símbolos, em detrimento do caráter fenomenológico da imagem.
Talvez o tom pessimista de Hillman nos seja útil, afinal, ele tem um terrível amor pela guerra, de idéias e pontos-de-vista. Imagino que todos nós que viemos a essas conferências em homenagem aos seus 80 anos, também!
Mas vamos começar pelo começo: eu sou uma psicóloga clínica, eu vivo do trabalho que faço na clínica. Atualmente, também, dou aulas num curso de graduação em psicologia analítica e supervisiono o trabalho clínico de alguns grupos na clínica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em SP, mas mesmo na sala de aula, uso e abuso dos exemplos clínicos, de sonhos, atos falhos, símbolos e imagens!
Dito isto, quero compartilhar um incômodo que me acompanha há tempos. Eu normalmente só escrevo sobre aquilo que me incomoda ou que me deixa curiosa. Parodiando uma citação de T.S. Eliot, mencionada por Hillman no primeiro dos três textos da década de 70 em que ele discute o conceito de imagem, que diz, “Essas questões com as quais eu mesmo discuto muito, muito explicam ou esclarecem… (HILLMAN, 1977: 1). Vamos ver se um pouco disso pode acontecer aqui hoje!
É curioso como em diversos encontros, simpósios, congressos junguianos, observo os comentários de que as palestras foram ótimas, sobretudo aquelas voltadas à amplificação simbólica da obra de algum autor ou pintor famoso. Nós, junguianos, primamos pelo conhecimento dos mitos e sua aplicação como pano de fundo para discussões intelectuais interessantíssimas!
Mas, e esse “mas” tem um tom de lamento, mais do que crítica, não se observa uma ênfase na discussão sobre a clínica, ou sobre as razões que levam cada um de nós que enche as salas nos congressos, ainda que para comentar um atendimento clínico, a enveredar pelos caminhos dos mitos, perdendo de vista, muitas vezes, o paciente como objeto da discussão. Não é usual se expor mais especificamente o modus operandi do trabalho analítico que um junguiano faz. Por que não falamos mais da clínica, afinal?
No último encontro do Himma, realizado em junho desse ano, o tema era “Anima, múltiplas imagens na clínica”. Contei a história dos camelos que choram e do Antonio, um paciente que pôde finalmente chorar em paz, sem barrar a dor e a delícia de existir com antidepressivos, herdados da mãe (RODRIGUES, 2006).
De lá para cá, continuo a remoer os assuntos da clínica. Que clínica fazemos, ou pelo menos “que clínica faço eu”?
Há uma, bastante conhecida da grande maioria, pelo menos, junguiana, relacionada aos mitos e contos-de-fadas, ao uso da magia dessas estórias que encantam gerações através dos tempos, para ajudar o paciente que vem até nós, a entender e ter alento na relação com seu sofrimento. A amplificação, segundo Jung, nos dá um sentimento de pertença e de acolhimento, uma vez que permite ao indivíduo que vive sua dor isoladamente, se reconhecer nas peripécias de heróis e heroínas e, com isso, ter esperança de soluções para os conflitos do drama ou mito pessoal que encena.
Há outra, bastante articulada em torno de questões expressivas: pintamos e bordamos entre quatro paredes e falamos de símbolos! Pois os símbolos são, em companhia dos complexos, a via régia para o inconsciente. Nada de novo, estamos seguindo os passos de Jung, bem de perto. E provavelmente, nenhum outro autor deu tanta importância aos símbolos quanto ele! Sua pesquisa em torno do simbolismo do self, da mandala, da alquimia, dos arquétipos, é hoje conhecida em territórios além mar.
E, antes que me esqueça, há o estilo clínico em que o terapeuta fica obcecado em descobrir a anima, o animus, o self, e por aí afora! Puxa vida, mas onde foi parar o paciente, mesmo? Não sei se podemos chamar isso de clínica, tamanha é a devoção dessa prática aos conceitos.
E a clínica imaginal? Ela existe? O que seria isso? Ops! Acabei de tropeçar num vício que me distancia do que pode ser uma perspectiva imaginal, porque segundo Hillman, devo me preocupar menos em nomear “o que uma coisa é”, através de substantivos, e me lançar mais a experimentar, num intenso jogo de analogias, “como ela é”. Portanto, a pergunta é “com o que se parece” a clinica imaginal?!
Um exemplo: numa sessão uma paciente está às voltas com questionamentos sobre a origem de seu sentimento de inferioridade, presente em diversas circunstâncias, especialmente na relação com seu marido. Quando peço a ela que fale com o que se parece essa inferioridade, ela logo saca da manga do colete uma explicação de que isso acontece por conta de sua insegurança.
Responder prontamente, oferecendo um sentido para aquilo que a faz sentir-se inferior é sua marca registrada. É a eterna busca pela origem de seu mal, ancorada na fantasia de que isso vá torná-la poderosa e, portanto, livre de sua inferioridade. Ou seja, dando o nome “insegurança” para justificar sua inferioridade, ela apaga a sensação desagradável despertada pela inferioridade. Torna-se superior, enfim, vai para bem longe do que quer que a inferioridade possa querer lhe dizer.
Mas eu insisto e esclareço: inferior-superior são imagens que se apresentam amalgamadas, são palavras-imagem diferentes de “insegurança”. Com o que se parece essa inferioridade?
Ela aceita o desafio e se arrisca: ...“me sinto inferior como se eu fosse uma eterna criança; me sinto inferior como se eu nunca pudesse ser adulta; me sinto inferior, sem conseguir saber se o que sei vale alguma coisa; me sinto inferior como se eu fosse ridícula por não saber o que fazer nessa situação; me sinto inferior e vazia, como se eu não soubesse nada de nada…”
Conforme faz analogias, portas se abrem e encontramos muitas facetas da inferioridade que a assombra, como se estivéssemos numa sala de espelhos, onde não é possível afirmar qual das imagens refletidas é A imagem verdadeira de sua inferioridade, pois todas elas, em múltiplos sentidos e aparições são reais! Além disso, ganharam precisão: apareceu uma eterna criança que não acredita que pode vir a ser adulta; outra que se sente ridícula e vazia, com a sensação de que nada sabe.
Cada vez que a imagem “inferioridade” pôde ser detalhada ganhou contornos específicos, já que novos desdobramentos de idéias e sentidos foram criados, sem ter de ser substituídos por uma referência externa à imagem inicial que se apresentou: a inferioridade não foi substituída pela insegurança. Imagino que se tivéssemos seguido pelo caminho da insegurança, teríamos expulsado a inferioridade da sala! Mas ficamos próximas da imagem e ainda que falássemos de elementos ligados a ela, voltávamos a ela o tempo todo. A imagem foi, então, cumprindo seu papel dinâmico, ganhando densidade, como diz Hillman.
Substantivo, adjetivo, analogias, o que isso tem a ver com psicologia, sobretudo clínica?
Voltemos ao estatuto de imagem, que é a pedra angular, por assim dizer, da psicologia arquetípica de James Hillman. Cabe a ele as honras pela diferenciação primeira do sentido particular desse conceito em relação ao de símbolo, usualmente conhecido na psicologia junguiana, sobretudo pela escola clássica.
Quanto ao conceito de símbolo, observamos que Jung utiliza esse termo, em diferentes textos, como sinônimo do termo imagem. O autor se preocupa em esclarecer as diferenças entre os conceitos de símbolo, signo e alegoria (JUNG, 1921/1991, §904:444), mas não faz nenhuma distinção específica entre tais termos e imagem.
Recapitulando: de acordo com Jung, um signo diz respeito a um elemento conhecido do ponto-de-vista da consciência coletiva, ou seja, tem um sentido fixo, ao passo que um símbolo não, ele é dinâmico, tem uma parte conhecida e outra desconhecida.
Coerente com sua concepção e fundamentação teórica acerca da psique, que não privilegia exclusivamente o papel fundador da censura como no modelo freudiano, Jung considera que o inconsciente já existe antes da formação da consciência, sendo que esta se constitui e se reformula constantemente, a posteriori. Desta forma, a psique cria, sem parar, símbolos e imagens com os quais a consciência tem de dialogar a todo o momento (JUNG, 1934/2001).
A natureza desse diálogo, segundo Jung, depende profundamente de uma atitude simbólica da consciência, o que aponta para o fato de que algo não é simbólico em si, mas passa a sê-lo somente em decorrência da qualidade da relação estabelecida pelo ego, mais especificamente falando, com tal conteúdo, pois nas palavras de Jung “depende da atitude da consciência, que observa se alguma coisa é símbolo ou não; desde que considere o fato dado não apenas como tal, mas como expressão de algo desconhecido” (JUNG, 1921/1991, §907:445).
Jacobi, num estudo minucioso sobre três conceitos fundamentais da psicologia analítica, que compõem um livro bastante familiar a todo “bom junguiano de carteirinha”, esclarece que a raiz etimológica da palavra símbolo (1) admite “as mais variadas definições e interpretações” (JACOBI, 1995:74). E, segundo a autora, todas elas indicam que o termo símbolo designaria algo que, “por trás do sentido objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo”. (JACOBI, 1995:75)
Jung se preocupa em apresentar o conceito de símbolo também como um transformador psíquico de energia, de caráter curativo e restaurador, apontando sua natureza altamente complexa, que apelaria às diferentes funções psíquicas (JUNG, 1921/1991, §911:447).
Entretanto, em diferentes enunciados, o aspecto do desconhecido que se apresenta à consciência, parece ser o “coração” ou a “raiz” do conceito de símbolo para Jung, talvez justamente pelo sentido de união de uma parte conhecida com outra desconhecida, já referido na etimologia do termo.
Por exemplo, quando Jung diz que “[…] todo fenômeno psicológico é um símbolo, na suposição que enuncie ou signifique algo mais e algo diferente que escape ao conhecimento atual” (JUNG, 1921/1991, §907:445). Ou ainda que “[…] o símbolo pressupõe sempre que a expressão escolhida seja a melhor designação ou formulação possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada” (JUNG, 1921/1991, §903:444).
De acordo com tal argumentação, a reunião das partes demanda, por parte da consciência, a busca de um sentido – desconhecido – que, adicionado à porção conhecida, produz finalmente um significado, o que pode, a meu ver, evocar uma atitude interpretativa unilateral frente à manifestação psíquica, seja o sonho, a obra de arte ou a palavra.
Ou seja, ainda que Jung se preocupe em apontar a necessidade de um diálogo da consciência com a imagem ou o símbolo, entendo que o significado etimológico do termo “símbolo” remete naturalmente à necessidade de ir em busca de uma outra parte ou aspecto da imagem, que estaria para além do que se apresenta como fenômeno.
Durante a elaboração de minha dissertação de mestrado, que tratava da materialidade dos objetos no setting, me encontrei com diferentes autores, que influenciaram minhas idéias, cada um a seu modo. Entretanto, o mais fértil e instigante encontro se deu com James Hillman. Talvez tenha sido esse autor que me lançou em novos atalhos para voltar à estrada principal, inspirada pela possibilidade de rever tudo o que já era suposto saber. Quando Hillman cruzou meu caminho, descobri que tudo ainda podia ser “re-visitado”, “re-imaginado”, “re-sonhado”, “re-visionado”, enfim.
Naturalmente, esse encontro foi também o mais assustador, porque me obrigou a abrir mão de algumas certezas para duvidar do que parecia óbvio. Ao dizer, por exemplo, que devemos “ficar com a imagem” (2), talvez Hillman esteja dizendo o óbvio: que não precisamos deixar a imagem sozinha e ir para outro lugar, por vezes distante, em busca de significados e interpretações brilhantes, porque a imagem traz em si seu significado. Basta ficar “circum-ambulando” ao seu redor, como dizia o próprio Jung: ficar junto dela e deixá-la falar. No melhor estilo da tradição dos alquimistas, com trabalho laborioso e paciente, o significado então se apresentará!
É numa seqüência de três textos do fim da década de 70 (conhecida como “trilogia das imagens”), que Hillman leva às últimas conseqüências esse exercício de particularização do sentido do termo “imagem” e do que ele chama de “abordagem imagística” (HILLMAN, 1977. 1978, 1979).
Hillman estabelece a diferença entre símbolo e imagem a partir de um contraponto entre uma base universal e outra, particular. Dito de outro modo, segundo ele, um símbolo está para um conceito ou substantivo que nomeia o objeto ou a experiência, como uma imagem está para uma condição particular ou adjetiva, que qualifica o objeto ou a experiência.
Segundo Hillman, portanto, cada um dos elementos de um sonho, tomados em separado, não devem ser entendidos como imagens. Isto porque, seguindo sua “regra de ouro”, símbolos podem vir a se tornar imagens, desde que inseridos num contexto particular, permeado por humor, configurando uma cena específica. Ou seja, um símbolo só pode ser tomado como imagem se puder ser qualificado precisamente num contexto.
Há, portanto, uma metamorfose lingüística em jogo, uma transformação de algo que antes era tomado como substantivo que, por conta de um artifício de qualificação, se transforma em adjetivo. Entretanto, não se deve tomar ingenuamente essa discussão como mera incursão gramatical! Pois se trata de um envolvimento erótico com as imagens, trata-se de se lançar num jogo de amor com elas, um jogo vincular, enfim, que se configura como o que Hillman caracteriza por “trabalho com as imagens”. Ou seja, uma imagem não é algo que se dá simplesmente, por natureza, mas precisa ser criada a partir de jogos da fantasia e embates múltiplos.
Um símbolo, por sua vez, serve à amplificação, pois permite uma consulta a significados universais identificados no campo cultural, normalmente catalogados nos dicionários de símbolos. A esse campo de pesquisa teórica, Hillman chama “simbologia”, o estudo dos símbolos.
Um símbolo, explica Hillman, localiza quanto a uma idéia principal, abarcando generalidade e convencionalidade ou o que conhecemos como uma base arquetípica das imagens. Uma imagem, ao contrário, localiza COMO o símbolo aparece, indicando um cenário subjetivo da situação narrada.
Por exemplo: uma paciente sonha que vai para uma festa, pois tem um encontro marcado com um homem, mas enquanto espera, é abordada por um grupo de crianças pobres. Uma delas se aproxima, toca seu braço esquerdo e lhe sussurra ao ouvido: bem-vinda ao mundo dos mortos!
Numa perspectiva simbólica, poderíamos elencar os vários símbolos que aparecem nesse sonho: encontro, criança, pobreza, lado esquerdo, mundo dos mortos.
Podemos sugerir uma série de significados para cada um desses símbolos isoladamente: um encontro marcado com um homem pode indicar um encontro com o animus, sobretudo no caso da paciente, que é do sexo feminino. A criança pode ser associada ao arquétipo da criança, um símbolo da novidade, da criatividade, mas também a sua sombra, afinal, faz parte de um grupo de crianças pobres; o braço esquerdo pode ser associado ao inconsciente, comumente identificado com o lado sinistro, como dizia Jung; finalmente, mundo dos mortos é o próprio nome do inconsciente, podendo ser associado a um caráter de transformação, de iniciação.
O próximo passo seria articular o significado de cada símbolo entre si: o sonho fala de um encontro marcado, possivelmente com o animus da paciente, sua dimensão masculina inconsciente. Esse encontro é antecedido pelo contato com um grupo de crianças pobres, o que pode indicar que faltaria à paciente, do ponto de vista consciente, recursos criativos para viver esse encontro, o que poderia ser resolvido desde que ela passe por uma transformação, integrando aspectos de sua sombra ao ego. Ou ainda, desde que ela se aproxime de sua criança interior empobrecida e dê ouvidos ao que ela tem a dizer. Outras variações também são possíveis: Talvez algo de sua natureza festiva precise aceitar o convite da morte, sofrer alguma depressão, ou se esvaziar, por exemplo.
Mas o que aconteceu ao interpretarmos o sentido de cada um desses símbolos separadamente, com base em seus significados universais? Hillman diria: perdeu-se o sonho!
Porque é só quando a paciente tem um encontro marcado com um homem e espera, que um grupo de crianças pobres a aborda; e é só quando uma das crianças pobres toca seu braço esquerdo que ela se abaixa; e é só quando ela oferece os ouvidos, que recebe a mensagem de boas-vindas ao mundo dos mortos!
E é possivelmente porque o homem não aparece que ela vive o encontro com as crianças pobres, o que nos faz pensar que talvez o encontro com o homem não se referisse exatamente a qualquer questão relacionada ao seu animus, mas precisamente com aquela criança que tocou seu braço esquerdo e lhe fez um convite ao pé do ouvido. Foi um convite sussurrado, não foi divulgado abertamente, apesar da criança fazer parte de um grupo. A precisão da narrativa do sonho nos diz que se tratava de um encontro a dois, mas não da sonhadora com um homem, supostamente seu animus, e sim, com aquela criança pobre.
Como num caleidoscópio, cada um dos elementos da narrativa do sonho precisam ser mantidos lado-a-lado, dialogando entre si, de maneira que várias imagens possam se formar ao fundo, mas nunca dissociadas do contexto específico deste sonho. Daí, não ser possível usar o significado universal de criança ou pobreza, pois é uma “criança-pobre-que-fala-ao-ouvido-e-dá-um recado”. Essa imagem não consta de nenhum dicionário de símbolos!
Portanto, vemos que uma imagem pode ser formada por símbolos (criança, pobreza, homem, mundo dos mortos), entretanto, o sonho como imagem se refere menos aos elementos em si, tomados separadamente, e mais à rede de relações dinâmicas entre tais elementos. Aqui, continuo seguindo a regra instituída por Hillman: buscando na especificidade do contexto a imagem.
Tentando ser coerente com tal perspectiva, as idéias de representação, projeção e interpretação – normalmente definidas a partir de um referencial hermenêutico – que se preocupa em resgatar um sentido oculto e desconhecido num território distanciado da imagem –, são propositadamente deixadas de lado o máximo possível, em busca de outra abordagem clínica, uma abordagem imagético-apresentativa.
Nesse sentido, Hillman se apega firmemente a um dos atalhos propostos por Jung: ficar com a imagem! E não se distanciar em associações ou amplificações que percam de vista a imagem nos sonhos, nos desenhos ou nas palavras.
Sabemos que muito desse método que Jung estabeleceu para abordar as figuras do inconsciente foi estabelecido em decorrência de suas experiências com a imaginação ativa, quando ele descobriu o que chamou de caráter objetivo da psique, sobretudo em seus diálogos com Filemon (JUNG, 1961/1975).
É fundamentalmente com base nessas experiências que Jung afirma que a imagem “não representa” nada, mas “apresenta”, ou seja, não esconde, mas revela significados que já estão presentes nela, pois a imagem é uma realidade em si mesma, por isso não necessita de uma tradução ou interpretação, o que foi também ressaltado por Sant’Anna (2001).
Santina Rodrigues
Fonte: Artigo postado no Blog: Himma: Estudos em Psicologia Imaginal - sábado, 6 de novembro de 2010http://grupohimma.blogspot.com/2010/11/simbolo-signo-imagem-reflexoes-de-uma.html
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Santina Rodrigues constrói um minuncioso e preciso percurso que culminou numa nova orientação clínica-teórica do trabalho junguiano , realizado a partir do afastamento da perspectiva simbólica para a dimensão estético-imaginativa como Hillman a propõe e, ainda nos brinda (fato raro na literatura junguiana, pós-junguiana ou arquetípica) com breves cenas clínicas que nos ajudam a melhor compreender como se atualiza este método em nossa realidade cotidiana em nossos consultórios.
Marcus Quintaes
Símbolo, Signo, Imagem. Reflexões de uma clínica imaginal. 80 anos de James Hillman.
Como será que essas três questões se inter-relacionam? Por que escolhi usar o precioso tempo que me cabe esta noite para falar sobre o que imagino possa ser uma clínica imaginal? E por que fiz isso estabelecendo como ponto de partida esses três conceitos? E o que tudo isso teria a ver com James Hillman, afinal?
Hillman, um autor que fez e continua fazendo contribuições instigantes em relação ao texto de Jung, mas que cá entre nós, nos deixa tanto quanto Jung com pouquíssimos estudos de caso propriamente ditos.
Aliás, há pouco mais de uma década Hillman abriu mão de atender, comunicando isso abertamente num congresso internacional, como vocês devem saber! É o mesmo autor, inclusive, que escreveu um livro com um título de arrepiar os cabelos de qualquer crente em psicoterapia, lembram? “Cem anos de psicoterapia e o mundo está cada vez pior” (1995)!
Possivelmente, Hillman está a criticar um jeito de fazer psicoterapia, ou um tipo específico de psicoterapia, isso vocês vão entender melhor lendo o livro. Quero apenas adiantar que mais do que desqualificar a psicoterapia, o que ele propõe é uma revisão de suas bases representacionais. Ele critica acidamente – como lhe é habitual - a terapia como um espaço dedicado à produção incessante de sentidos, que viriam de fora para dentro, dos manuais e dicionários de símbolos, em detrimento do caráter fenomenológico da imagem.
Talvez o tom pessimista de Hillman nos seja útil, afinal, ele tem um terrível amor pela guerra, de idéias e pontos-de-vista. Imagino que todos nós que viemos a essas conferências em homenagem aos seus 80 anos, também!
Mas vamos começar pelo começo: eu sou uma psicóloga clínica, eu vivo do trabalho que faço na clínica. Atualmente, também, dou aulas num curso de graduação em psicologia analítica e supervisiono o trabalho clínico de alguns grupos na clínica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em SP, mas mesmo na sala de aula, uso e abuso dos exemplos clínicos, de sonhos, atos falhos, símbolos e imagens!
Dito isto, quero compartilhar um incômodo que me acompanha há tempos. Eu normalmente só escrevo sobre aquilo que me incomoda ou que me deixa curiosa. Parodiando uma citação de T.S. Eliot, mencionada por Hillman no primeiro dos três textos da década de 70 em que ele discute o conceito de imagem, que diz, “Essas questões com as quais eu mesmo discuto muito, muito explicam ou esclarecem… (HILLMAN, 1977: 1). Vamos ver se um pouco disso pode acontecer aqui hoje!
É curioso como em diversos encontros, simpósios, congressos junguianos, observo os comentários de que as palestras foram ótimas, sobretudo aquelas voltadas à amplificação simbólica da obra de algum autor ou pintor famoso. Nós, junguianos, primamos pelo conhecimento dos mitos e sua aplicação como pano de fundo para discussões intelectuais interessantíssimas!
Mas, e esse “mas” tem um tom de lamento, mais do que crítica, não se observa uma ênfase na discussão sobre a clínica, ou sobre as razões que levam cada um de nós que enche as salas nos congressos, ainda que para comentar um atendimento clínico, a enveredar pelos caminhos dos mitos, perdendo de vista, muitas vezes, o paciente como objeto da discussão. Não é usual se expor mais especificamente o modus operandi do trabalho analítico que um junguiano faz. Por que não falamos mais da clínica, afinal?
No último encontro do Himma, realizado em junho desse ano, o tema era “Anima, múltiplas imagens na clínica”. Contei a história dos camelos que choram e do Antonio, um paciente que pôde finalmente chorar em paz, sem barrar a dor e a delícia de existir com antidepressivos, herdados da mãe (RODRIGUES, 2006).
De lá para cá, continuo a remoer os assuntos da clínica. Que clínica fazemos, ou pelo menos “que clínica faço eu”?
Há uma, bastante conhecida da grande maioria, pelo menos, junguiana, relacionada aos mitos e contos-de-fadas, ao uso da magia dessas estórias que encantam gerações através dos tempos, para ajudar o paciente que vem até nós, a entender e ter alento na relação com seu sofrimento. A amplificação, segundo Jung, nos dá um sentimento de pertença e de acolhimento, uma vez que permite ao indivíduo que vive sua dor isoladamente, se reconhecer nas peripécias de heróis e heroínas e, com isso, ter esperança de soluções para os conflitos do drama ou mito pessoal que encena.
Há outra, bastante articulada em torno de questões expressivas: pintamos e bordamos entre quatro paredes e falamos de símbolos! Pois os símbolos são, em companhia dos complexos, a via régia para o inconsciente. Nada de novo, estamos seguindo os passos de Jung, bem de perto. E provavelmente, nenhum outro autor deu tanta importância aos símbolos quanto ele! Sua pesquisa em torno do simbolismo do self, da mandala, da alquimia, dos arquétipos, é hoje conhecida em territórios além mar.
E, antes que me esqueça, há o estilo clínico em que o terapeuta fica obcecado em descobrir a anima, o animus, o self, e por aí afora! Puxa vida, mas onde foi parar o paciente, mesmo? Não sei se podemos chamar isso de clínica, tamanha é a devoção dessa prática aos conceitos.
E a clínica imaginal? Ela existe? O que seria isso? Ops! Acabei de tropeçar num vício que me distancia do que pode ser uma perspectiva imaginal, porque segundo Hillman, devo me preocupar menos em nomear “o que uma coisa é”, através de substantivos, e me lançar mais a experimentar, num intenso jogo de analogias, “como ela é”. Portanto, a pergunta é “com o que se parece” a clinica imaginal?!
Um exemplo: numa sessão uma paciente está às voltas com questionamentos sobre a origem de seu sentimento de inferioridade, presente em diversas circunstâncias, especialmente na relação com seu marido. Quando peço a ela que fale com o que se parece essa inferioridade, ela logo saca da manga do colete uma explicação de que isso acontece por conta de sua insegurança.
Responder prontamente, oferecendo um sentido para aquilo que a faz sentir-se inferior é sua marca registrada. É a eterna busca pela origem de seu mal, ancorada na fantasia de que isso vá torná-la poderosa e, portanto, livre de sua inferioridade. Ou seja, dando o nome “insegurança” para justificar sua inferioridade, ela apaga a sensação desagradável despertada pela inferioridade. Torna-se superior, enfim, vai para bem longe do que quer que a inferioridade possa querer lhe dizer.
Mas eu insisto e esclareço: inferior-superior são imagens que se apresentam amalgamadas, são palavras-imagem diferentes de “insegurança”. Com o que se parece essa inferioridade?
Ela aceita o desafio e se arrisca: ...“me sinto inferior como se eu fosse uma eterna criança; me sinto inferior como se eu nunca pudesse ser adulta; me sinto inferior, sem conseguir saber se o que sei vale alguma coisa; me sinto inferior como se eu fosse ridícula por não saber o que fazer nessa situação; me sinto inferior e vazia, como se eu não soubesse nada de nada…”
Conforme faz analogias, portas se abrem e encontramos muitas facetas da inferioridade que a assombra, como se estivéssemos numa sala de espelhos, onde não é possível afirmar qual das imagens refletidas é A imagem verdadeira de sua inferioridade, pois todas elas, em múltiplos sentidos e aparições são reais! Além disso, ganharam precisão: apareceu uma eterna criança que não acredita que pode vir a ser adulta; outra que se sente ridícula e vazia, com a sensação de que nada sabe.
Cada vez que a imagem “inferioridade” pôde ser detalhada ganhou contornos específicos, já que novos desdobramentos de idéias e sentidos foram criados, sem ter de ser substituídos por uma referência externa à imagem inicial que se apresentou: a inferioridade não foi substituída pela insegurança. Imagino que se tivéssemos seguido pelo caminho da insegurança, teríamos expulsado a inferioridade da sala! Mas ficamos próximas da imagem e ainda que falássemos de elementos ligados a ela, voltávamos a ela o tempo todo. A imagem foi, então, cumprindo seu papel dinâmico, ganhando densidade, como diz Hillman.
Substantivo, adjetivo, analogias, o que isso tem a ver com psicologia, sobretudo clínica?
Voltemos ao estatuto de imagem, que é a pedra angular, por assim dizer, da psicologia arquetípica de James Hillman. Cabe a ele as honras pela diferenciação primeira do sentido particular desse conceito em relação ao de símbolo, usualmente conhecido na psicologia junguiana, sobretudo pela escola clássica.
Quanto ao conceito de símbolo, observamos que Jung utiliza esse termo, em diferentes textos, como sinônimo do termo imagem. O autor se preocupa em esclarecer as diferenças entre os conceitos de símbolo, signo e alegoria (JUNG, 1921/1991, §904:444), mas não faz nenhuma distinção específica entre tais termos e imagem.
Recapitulando: de acordo com Jung, um signo diz respeito a um elemento conhecido do ponto-de-vista da consciência coletiva, ou seja, tem um sentido fixo, ao passo que um símbolo não, ele é dinâmico, tem uma parte conhecida e outra desconhecida.
Coerente com sua concepção e fundamentação teórica acerca da psique, que não privilegia exclusivamente o papel fundador da censura como no modelo freudiano, Jung considera que o inconsciente já existe antes da formação da consciência, sendo que esta se constitui e se reformula constantemente, a posteriori. Desta forma, a psique cria, sem parar, símbolos e imagens com os quais a consciência tem de dialogar a todo o momento (JUNG, 1934/2001).
A natureza desse diálogo, segundo Jung, depende profundamente de uma atitude simbólica da consciência, o que aponta para o fato de que algo não é simbólico em si, mas passa a sê-lo somente em decorrência da qualidade da relação estabelecida pelo ego, mais especificamente falando, com tal conteúdo, pois nas palavras de Jung “depende da atitude da consciência, que observa se alguma coisa é símbolo ou não; desde que considere o fato dado não apenas como tal, mas como expressão de algo desconhecido” (JUNG, 1921/1991, §907:445).
Jacobi, num estudo minucioso sobre três conceitos fundamentais da psicologia analítica, que compõem um livro bastante familiar a todo “bom junguiano de carteirinha”, esclarece que a raiz etimológica da palavra símbolo (1) admite “as mais variadas definições e interpretações” (JACOBI, 1995:74). E, segundo a autora, todas elas indicam que o termo símbolo designaria algo que, “por trás do sentido objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo”. (JACOBI, 1995:75)
Jung se preocupa em apresentar o conceito de símbolo também como um transformador psíquico de energia, de caráter curativo e restaurador, apontando sua natureza altamente complexa, que apelaria às diferentes funções psíquicas (JUNG, 1921/1991, §911:447).
Entretanto, em diferentes enunciados, o aspecto do desconhecido que se apresenta à consciência, parece ser o “coração” ou a “raiz” do conceito de símbolo para Jung, talvez justamente pelo sentido de união de uma parte conhecida com outra desconhecida, já referido na etimologia do termo.
Por exemplo, quando Jung diz que “[…] todo fenômeno psicológico é um símbolo, na suposição que enuncie ou signifique algo mais e algo diferente que escape ao conhecimento atual” (JUNG, 1921/1991, §907:445). Ou ainda que “[…] o símbolo pressupõe sempre que a expressão escolhida seja a melhor designação ou formulação possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada” (JUNG, 1921/1991, §903:444).
De acordo com tal argumentação, a reunião das partes demanda, por parte da consciência, a busca de um sentido – desconhecido – que, adicionado à porção conhecida, produz finalmente um significado, o que pode, a meu ver, evocar uma atitude interpretativa unilateral frente à manifestação psíquica, seja o sonho, a obra de arte ou a palavra.
Ou seja, ainda que Jung se preocupe em apontar a necessidade de um diálogo da consciência com a imagem ou o símbolo, entendo que o significado etimológico do termo “símbolo” remete naturalmente à necessidade de ir em busca de uma outra parte ou aspecto da imagem, que estaria para além do que se apresenta como fenômeno.
Durante a elaboração de minha dissertação de mestrado, que tratava da materialidade dos objetos no setting, me encontrei com diferentes autores, que influenciaram minhas idéias, cada um a seu modo. Entretanto, o mais fértil e instigante encontro se deu com James Hillman. Talvez tenha sido esse autor que me lançou em novos atalhos para voltar à estrada principal, inspirada pela possibilidade de rever tudo o que já era suposto saber. Quando Hillman cruzou meu caminho, descobri que tudo ainda podia ser “re-visitado”, “re-imaginado”, “re-sonhado”, “re-visionado”, enfim.
Naturalmente, esse encontro foi também o mais assustador, porque me obrigou a abrir mão de algumas certezas para duvidar do que parecia óbvio. Ao dizer, por exemplo, que devemos “ficar com a imagem” (2), talvez Hillman esteja dizendo o óbvio: que não precisamos deixar a imagem sozinha e ir para outro lugar, por vezes distante, em busca de significados e interpretações brilhantes, porque a imagem traz em si seu significado. Basta ficar “circum-ambulando” ao seu redor, como dizia o próprio Jung: ficar junto dela e deixá-la falar. No melhor estilo da tradição dos alquimistas, com trabalho laborioso e paciente, o significado então se apresentará!
É numa seqüência de três textos do fim da década de 70 (conhecida como “trilogia das imagens”), que Hillman leva às últimas conseqüências esse exercício de particularização do sentido do termo “imagem” e do que ele chama de “abordagem imagística” (HILLMAN, 1977. 1978, 1979).
Hillman estabelece a diferença entre símbolo e imagem a partir de um contraponto entre uma base universal e outra, particular. Dito de outro modo, segundo ele, um símbolo está para um conceito ou substantivo que nomeia o objeto ou a experiência, como uma imagem está para uma condição particular ou adjetiva, que qualifica o objeto ou a experiência.
Segundo Hillman, portanto, cada um dos elementos de um sonho, tomados em separado, não devem ser entendidos como imagens. Isto porque, seguindo sua “regra de ouro”, símbolos podem vir a se tornar imagens, desde que inseridos num contexto particular, permeado por humor, configurando uma cena específica. Ou seja, um símbolo só pode ser tomado como imagem se puder ser qualificado precisamente num contexto.
Há, portanto, uma metamorfose lingüística em jogo, uma transformação de algo que antes era tomado como substantivo que, por conta de um artifício de qualificação, se transforma em adjetivo. Entretanto, não se deve tomar ingenuamente essa discussão como mera incursão gramatical! Pois se trata de um envolvimento erótico com as imagens, trata-se de se lançar num jogo de amor com elas, um jogo vincular, enfim, que se configura como o que Hillman caracteriza por “trabalho com as imagens”. Ou seja, uma imagem não é algo que se dá simplesmente, por natureza, mas precisa ser criada a partir de jogos da fantasia e embates múltiplos.
Um símbolo, por sua vez, serve à amplificação, pois permite uma consulta a significados universais identificados no campo cultural, normalmente catalogados nos dicionários de símbolos. A esse campo de pesquisa teórica, Hillman chama “simbologia”, o estudo dos símbolos.
Um símbolo, explica Hillman, localiza quanto a uma idéia principal, abarcando generalidade e convencionalidade ou o que conhecemos como uma base arquetípica das imagens. Uma imagem, ao contrário, localiza COMO o símbolo aparece, indicando um cenário subjetivo da situação narrada.
Por exemplo: uma paciente sonha que vai para uma festa, pois tem um encontro marcado com um homem, mas enquanto espera, é abordada por um grupo de crianças pobres. Uma delas se aproxima, toca seu braço esquerdo e lhe sussurra ao ouvido: bem-vinda ao mundo dos mortos!
Numa perspectiva simbólica, poderíamos elencar os vários símbolos que aparecem nesse sonho: encontro, criança, pobreza, lado esquerdo, mundo dos mortos.
Podemos sugerir uma série de significados para cada um desses símbolos isoladamente: um encontro marcado com um homem pode indicar um encontro com o animus, sobretudo no caso da paciente, que é do sexo feminino. A criança pode ser associada ao arquétipo da criança, um símbolo da novidade, da criatividade, mas também a sua sombra, afinal, faz parte de um grupo de crianças pobres; o braço esquerdo pode ser associado ao inconsciente, comumente identificado com o lado sinistro, como dizia Jung; finalmente, mundo dos mortos é o próprio nome do inconsciente, podendo ser associado a um caráter de transformação, de iniciação.
O próximo passo seria articular o significado de cada símbolo entre si: o sonho fala de um encontro marcado, possivelmente com o animus da paciente, sua dimensão masculina inconsciente. Esse encontro é antecedido pelo contato com um grupo de crianças pobres, o que pode indicar que faltaria à paciente, do ponto de vista consciente, recursos criativos para viver esse encontro, o que poderia ser resolvido desde que ela passe por uma transformação, integrando aspectos de sua sombra ao ego. Ou ainda, desde que ela se aproxime de sua criança interior empobrecida e dê ouvidos ao que ela tem a dizer. Outras variações também são possíveis: Talvez algo de sua natureza festiva precise aceitar o convite da morte, sofrer alguma depressão, ou se esvaziar, por exemplo.
Mas o que aconteceu ao interpretarmos o sentido de cada um desses símbolos separadamente, com base em seus significados universais? Hillman diria: perdeu-se o sonho!
Porque é só quando a paciente tem um encontro marcado com um homem e espera, que um grupo de crianças pobres a aborda; e é só quando uma das crianças pobres toca seu braço esquerdo que ela se abaixa; e é só quando ela oferece os ouvidos, que recebe a mensagem de boas-vindas ao mundo dos mortos!
E é possivelmente porque o homem não aparece que ela vive o encontro com as crianças pobres, o que nos faz pensar que talvez o encontro com o homem não se referisse exatamente a qualquer questão relacionada ao seu animus, mas precisamente com aquela criança que tocou seu braço esquerdo e lhe fez um convite ao pé do ouvido. Foi um convite sussurrado, não foi divulgado abertamente, apesar da criança fazer parte de um grupo. A precisão da narrativa do sonho nos diz que se tratava de um encontro a dois, mas não da sonhadora com um homem, supostamente seu animus, e sim, com aquela criança pobre.
Como num caleidoscópio, cada um dos elementos da narrativa do sonho precisam ser mantidos lado-a-lado, dialogando entre si, de maneira que várias imagens possam se formar ao fundo, mas nunca dissociadas do contexto específico deste sonho. Daí, não ser possível usar o significado universal de criança ou pobreza, pois é uma “criança-pobre-que-fala-ao-ouvido-e-dá-um recado”. Essa imagem não consta de nenhum dicionário de símbolos!
Portanto, vemos que uma imagem pode ser formada por símbolos (criança, pobreza, homem, mundo dos mortos), entretanto, o sonho como imagem se refere menos aos elementos em si, tomados separadamente, e mais à rede de relações dinâmicas entre tais elementos. Aqui, continuo seguindo a regra instituída por Hillman: buscando na especificidade do contexto a imagem.
Tentando ser coerente com tal perspectiva, as idéias de representação, projeção e interpretação – normalmente definidas a partir de um referencial hermenêutico – que se preocupa em resgatar um sentido oculto e desconhecido num território distanciado da imagem –, são propositadamente deixadas de lado o máximo possível, em busca de outra abordagem clínica, uma abordagem imagético-apresentativa.
Nesse sentido, Hillman se apega firmemente a um dos atalhos propostos por Jung: ficar com a imagem! E não se distanciar em associações ou amplificações que percam de vista a imagem nos sonhos, nos desenhos ou nas palavras.
Sabemos que muito desse método que Jung estabeleceu para abordar as figuras do inconsciente foi estabelecido em decorrência de suas experiências com a imaginação ativa, quando ele descobriu o que chamou de caráter objetivo da psique, sobretudo em seus diálogos com Filemon (JUNG, 1961/1975).
É fundamentalmente com base nessas experiências que Jung afirma que a imagem “não representa” nada, mas “apresenta”, ou seja, não esconde, mas revela significados que já estão presentes nela, pois a imagem é uma realidade em si mesma, por isso não necessita de uma tradução ou interpretação, o que foi também ressaltado por Sant’Anna (2001).
Santina Rodrigues
Fonte: Artigo postado no Blog: Himma: Estudos em Psicologia Imaginal - sábado, 6 de novembro de 2010http://grupohimma.blogspot.com/2010/11/simbolo-signo-imagem-reflexoes-de-uma.html
continua...
incrível!!!!!!
ResponderExcluirdigerindo
e redeglutindo......
(PS: em uma semana a vida retoma ao normal)
Interessantíssimo!
ResponderExcluirA dificuldade da clínica
recai sobre o ponto comum
desta cegueira branca: o ser humano.
Fragmentar,
Catalogar,
Especializar,
Classificar,
Qualificar.
O caminho não segue no sentido
do evoluir,
mas na perigosa trilha
do buscar entender.
À medida que fragmentamos para
podermos digerir,
nos esquecemos de como juntar as peças novamente
e passamos a acreditar que os pequenos pedaços
em nosso colo são independentes e desconexos.
Neste sentido, compreendo o que tem
pontuado como a luta entre criacionismo e
evolucionismo....não havia me dado conta.....
Neste descobrir diário,
verdades antigas vem ter conosco
como descobertas ameaçadoras
Mas tenhamos calma:
a clínica sonhada virá
pois já esteve;
seremos nós a sermos nós,
posto que um dia,
ainda que perdido nos sonhos,
já fomos.
"...
ResponderExcluirTemos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto."
F Pessoa