Poderia discutir muitos outros elementos apontados por Hillman em relação à abordagem imagística, mas elegi especificamente o viés da palavra, pois quero falar da importância da materialidade do discurso. Em minha dissertação de mestrado, dediquei-me a refletir sobre a materialidade dos objetos no setting, como disse, por isso entendo que agora é hora de me aproximar da materialidade das palavras!
Este é, sem dúvida, outro atalho fundamental por onde Hillman se embrenhou ao propor uma abordagem imagística, enfatizando o trabalho com a imagem com base no discurso imaginal, e aprofundando esse campo de discussão aberto por Jung. É curioso que Jung não tenha seguido mais a fundo sua argumentação inicial, que enfatizava a relação entre imagem e texto, ainda que num texto sobre os sonhos, de 1945, ele diga, textualmente:
“A partir deste momento desisti gradualmente de seguir as associações que se afastassem muito do texto de um sonho. Preferi, antes, concentrar-me nas associações com o próprio sonho, convencido de que o sonho expressaria o que de específico o inconsciente estivesse tentando dizer”. (JUNG, 1964, pp. 50 – grifo meu)
Apesar de não diferenciar conceitualmente símbolo de imagem, como vimos anteriormente, Jung apresenta uma idéia bem precisa sobre a origem da imagem psíquica, como produção espontânea da fantasia, fundamentalmente de teor poético, desvinculado da mera reprodução visual de um objeto exterior (JUNG, 1921/1991, §827:417). Imagem, portanto, não deve ser entendida, de acordo com ele, como reflexo no fundo da retina, não é o olho sensorial que está em jogo, mas o olho imaginal!
Acredito que isso seja importante, pois é comum a associação da psicologia junguiana com uma clínica de imagens. Entretanto, parece-me que “imagem” é entendida de modo literal, e por vezes exclusivo, como imagem visual, e aqui temos uma oportunidade de afirmar o sentido poético original indicado por Jung para o termo imagem.
Tomemos como exemplo, o sonho de uma paciente:
“No sonho, fui ao banheiro e minha toalha da Minie tava pendurada. Eu pegava a toalha gritando com a Nadinha: “pô, porque você usou minha toalha da Minie?” Depois eu via a Nadinha vindo da cozinha, ela tava segurando minha caneca da Minie. Ela tinha acabado de cortar as mãos, sangrava muito, porque ela tinha ficado sem as duas mãos, só tinha os pulsos, como se tivessem amputado as mãos dela. Eu ficava desesperada e embrulhava os pulsos dela com a toalha da Minie. Depois eu já via ela melhor, com os pulsos cicatrizados.”
Poderíamos iniciar a análise desse sonho, tomando os dados do caso que indicam detalhes da vida consciente da paciente, afinal, Jung nos fez a indicação clara de que só é possível interpretar um sonho conhecendo a condição consciente do sonhador, dado o caráter compensatório da produção onírica inconsciente.
Mas não vou descarregar um caminhão de informações objetivas sobre a vida da paciente, porque ainda estou seguindo a regra de ouro sugerida por Jung, de não me afastar do sonho como texto ou do texto do sonho.
Então, seguindo esta recomendação, e nos atendo à narrativa do sonho, não passa despercebido que duas figuras imaginais se apresentam personificadas com nomes indicados no diminutivo: Nadinha e Minie, e parece que é precisamente no desdobramento da ação entre elas que se configura o sonho como imagem.
Apesar da paciente querer justificar a aparição de tais figuras associando-as a referências familiares do mundo da consciência – ela associa Minie com a Disney e Nadinha com uma amiga, cujo nome é Nadia –, mantive-me próxima da imagem como se apresentava, tentando não aderir a suas associações imediatas, pois entendo que estaríamos nos distanciando do sonho.
É curioso que Nadinha estivesse com as mãos amputadas e que a sonhadora fosse ao seu encontro com uma toalha da Minie, ou seria uma mini-toalha?
Nadinha, por sua vez, só aparece com as mãos sangrando depois de ter usado a toalha da Minie, que estava pendurada no banheiro. Ou será que ela perdeu as mãos na mini-toalha? Qual a relação entre a amputação, o sangramento, a perda das mãos, e a Nadinha que sangra? Será que ela sangra um nadinha de nádia?
Que Nadinha é essa? Com o que ela se parece? Será com um pequenino nada? Ainda não sabemos o que o sonho significa, puxa vida!! Como diz Hillman (1977: 27), ficamos nós duas juntas, a paciente e eu, ou nós três, a paciente, o sonho e eu, levando
tapas na cara, até que a paciente se compadeceu da Nadinha do sonho, chorou por suas mãos amputadas. Mas também se deu conta de que a mini-toalha-da-minie estancou o sangramento, que possivelmente tinha iniciado. E que apesar de parecer mini, foi suficiente para promover a cicatrização das mãos. Algo que a princípio podia ser tomado como uma tragédia fez a paciente perceber que o que é aparentemente mini, pode ser ambivalente o suficiente para ferir e para cuidar.
Nessa perspectiva, a Nadinha do sonho deixa de ser um nome próprio, um substantivo, um conceito referido a uma pessoa de carne e osso do convívio da paciente. Ela ganha ares de adjetivo, é a Nadinha que usa a tolha da minie, ou a mini-nadinha... E nós estabelecemos com a imagem um diálogo baseado no que Hillman propõe como método de “AMIGAR AS IMAGENS”, pois segundo ele “Nenhum amigo ou animal quer ser interpretado, apesar de clamar por compreensão” (HILLMAN, 1977: 21).
Então, não vamos tratar a Nadinha do sonho como um referente de algum conteúdo reprimido do campo da consciência da sonhadora. Deixemos que a “Nadinha-de-mãos-amputadas” se apresente e tenha as “mãos-que-sangram” cicatrizadas na “mini-toalha-da-minie”!
Vejam, eu não estou obcecada por estabelecer um significado unívoco para o sonho, não quero identificar a Nadinha com nenhum elemento relacionado à Nádia da vida real, não quero tomá-la no sentido objetivo, porque não quero submeter o mundo das imagens ao mundo do ego vigil. Então, alguns significados podem ser alinhavados entre si e promover sentidos, ainda que de caráter ambivalente, mas só a partir das próprias imagens e do que elas apresentam, não a partir do que suponho que elas possam significar em relação à consciência.
É claro, poderia ter adotado uma postura diferente, e vasculhado em minha memória algum mito ou conto de fadas em que uma princesa perde as mãos, certamente deve haver alguma. Mas se fizesse isso, estaria mais uma vez me distanciando da imagem do sonho, porque qualquer heroína que perca as mãos ou os pés não seria a “nadinha-que-machucou-as-mãos-no-contato-com-a-tolha-da-minie”. Essa “nadinha” não existe em lugar algum, a não ser nesse sonho!
Poderia, como disse, ter recorrido à recomendação clássica de Jung, de tomar o sonho como uma compensação à atitude unilateral do ego. Para isso, deveria ter esclarecido uma série de dados objetivos sobre a paciente. Entretanto, acredito que para sustentar uma postura imaginal, não preciso fazer isso, pelo menos num primeiro momento, justamente para evitar o vício da interpretação hermenêutica que facilmente atribuiria sentidos universais aos elementos do sonho, e impediria que vocês me acompanhassem no trabalho com as imagens como propus aqui.
Desta forma, assumo minha aproximação com o Jung que ofereceu argumentos teóricos em favor de uma clínica da imagem e, claro, toda escolha tem suas conseqüências, é uma declaração subjetiva, como ele mesmo dizia.
Essa escolha não é aleatória, mas fruto de uma reformulação vivida ao longo da elaboração de minha dissertação de mestrado (OLIVEIRA, 2006), defendida em maio deste ano, que representou uma espécie de iniciação, provavelmente em aspectos mais amplos do que era possível descrever naquele momento.
O sentido iniciático que se apresentou mais claramente foi do ponto-de-vista teórico, como é de se esperar num trabalho dessa natureza. Ao ler e reler os textos de Jung para fundamentar minhas idéias sobre o tema central da pesquisa, constatei que diante da vastidão de sua obra, diferentes leituras podiam ser empreendidas.
Nesse percurso me distanciei do Jung da clínica da amplificação ou da clínica da compensação, e também da clínica da individuação do ego, fui em direção à clínica da individuação da imagem, como Hillman propõe.
Então, a pergunta que não quer calar: serei eu ainda uma junguiana? Não me preocupo mais em encontrar a resposta para essa questão. Vamos tratar esta questão como uma imagem! Por hora, me ocupo de dar testemunhos de como faço a minha clínica. Afinal, é só falando aos nossos pares sobre nossa prática que podemos nos ouvir e perceber o que nos sustenta em termos teóricos, o que espero ter feito, pelo menos um pouco, na companhia de vocês essa noite.
Santina Rodrigues
Fonte: Artigo postado no Blog: Himma: Estudos em Psicologia Imaginal - sábado, 6 de novembro de 2010
http://grupohimma.blogspot.com/2010/11/simbolo-signo-imagem-reflexoes-de-uma.html
Este é, sem dúvida, outro atalho fundamental por onde Hillman se embrenhou ao propor uma abordagem imagística, enfatizando o trabalho com a imagem com base no discurso imaginal, e aprofundando esse campo de discussão aberto por Jung. É curioso que Jung não tenha seguido mais a fundo sua argumentação inicial, que enfatizava a relação entre imagem e texto, ainda que num texto sobre os sonhos, de 1945, ele diga, textualmente:
“A partir deste momento desisti gradualmente de seguir as associações que se afastassem muito do texto de um sonho. Preferi, antes, concentrar-me nas associações com o próprio sonho, convencido de que o sonho expressaria o que de específico o inconsciente estivesse tentando dizer”. (JUNG, 1964, pp. 50 – grifo meu)
Apesar de não diferenciar conceitualmente símbolo de imagem, como vimos anteriormente, Jung apresenta uma idéia bem precisa sobre a origem da imagem psíquica, como produção espontânea da fantasia, fundamentalmente de teor poético, desvinculado da mera reprodução visual de um objeto exterior (JUNG, 1921/1991, §827:417). Imagem, portanto, não deve ser entendida, de acordo com ele, como reflexo no fundo da retina, não é o olho sensorial que está em jogo, mas o olho imaginal!
Acredito que isso seja importante, pois é comum a associação da psicologia junguiana com uma clínica de imagens. Entretanto, parece-me que “imagem” é entendida de modo literal, e por vezes exclusivo, como imagem visual, e aqui temos uma oportunidade de afirmar o sentido poético original indicado por Jung para o termo imagem.
Tomemos como exemplo, o sonho de uma paciente:
“No sonho, fui ao banheiro e minha toalha da Minie tava pendurada. Eu pegava a toalha gritando com a Nadinha: “pô, porque você usou minha toalha da Minie?” Depois eu via a Nadinha vindo da cozinha, ela tava segurando minha caneca da Minie. Ela tinha acabado de cortar as mãos, sangrava muito, porque ela tinha ficado sem as duas mãos, só tinha os pulsos, como se tivessem amputado as mãos dela. Eu ficava desesperada e embrulhava os pulsos dela com a toalha da Minie. Depois eu já via ela melhor, com os pulsos cicatrizados.”
Poderíamos iniciar a análise desse sonho, tomando os dados do caso que indicam detalhes da vida consciente da paciente, afinal, Jung nos fez a indicação clara de que só é possível interpretar um sonho conhecendo a condição consciente do sonhador, dado o caráter compensatório da produção onírica inconsciente.
Mas não vou descarregar um caminhão de informações objetivas sobre a vida da paciente, porque ainda estou seguindo a regra de ouro sugerida por Jung, de não me afastar do sonho como texto ou do texto do sonho.
Então, seguindo esta recomendação, e nos atendo à narrativa do sonho, não passa despercebido que duas figuras imaginais se apresentam personificadas com nomes indicados no diminutivo: Nadinha e Minie, e parece que é precisamente no desdobramento da ação entre elas que se configura o sonho como imagem.
Apesar da paciente querer justificar a aparição de tais figuras associando-as a referências familiares do mundo da consciência – ela associa Minie com a Disney e Nadinha com uma amiga, cujo nome é Nadia –, mantive-me próxima da imagem como se apresentava, tentando não aderir a suas associações imediatas, pois entendo que estaríamos nos distanciando do sonho.
É curioso que Nadinha estivesse com as mãos amputadas e que a sonhadora fosse ao seu encontro com uma toalha da Minie, ou seria uma mini-toalha?
Nadinha, por sua vez, só aparece com as mãos sangrando depois de ter usado a toalha da Minie, que estava pendurada no banheiro. Ou será que ela perdeu as mãos na mini-toalha? Qual a relação entre a amputação, o sangramento, a perda das mãos, e a Nadinha que sangra? Será que ela sangra um nadinha de nádia?
Que Nadinha é essa? Com o que ela se parece? Será com um pequenino nada? Ainda não sabemos o que o sonho significa, puxa vida!! Como diz Hillman (1977: 27), ficamos nós duas juntas, a paciente e eu, ou nós três, a paciente, o sonho e eu, levando
tapas na cara, até que a paciente se compadeceu da Nadinha do sonho, chorou por suas mãos amputadas. Mas também se deu conta de que a mini-toalha-da-minie estancou o sangramento, que possivelmente tinha iniciado. E que apesar de parecer mini, foi suficiente para promover a cicatrização das mãos. Algo que a princípio podia ser tomado como uma tragédia fez a paciente perceber que o que é aparentemente mini, pode ser ambivalente o suficiente para ferir e para cuidar.
Nessa perspectiva, a Nadinha do sonho deixa de ser um nome próprio, um substantivo, um conceito referido a uma pessoa de carne e osso do convívio da paciente. Ela ganha ares de adjetivo, é a Nadinha que usa a tolha da minie, ou a mini-nadinha... E nós estabelecemos com a imagem um diálogo baseado no que Hillman propõe como método de “AMIGAR AS IMAGENS”, pois segundo ele “Nenhum amigo ou animal quer ser interpretado, apesar de clamar por compreensão” (HILLMAN, 1977: 21).
Então, não vamos tratar a Nadinha do sonho como um referente de algum conteúdo reprimido do campo da consciência da sonhadora. Deixemos que a “Nadinha-de-mãos-amputadas” se apresente e tenha as “mãos-que-sangram” cicatrizadas na “mini-toalha-da-minie”!
Vejam, eu não estou obcecada por estabelecer um significado unívoco para o sonho, não quero identificar a Nadinha com nenhum elemento relacionado à Nádia da vida real, não quero tomá-la no sentido objetivo, porque não quero submeter o mundo das imagens ao mundo do ego vigil. Então, alguns significados podem ser alinhavados entre si e promover sentidos, ainda que de caráter ambivalente, mas só a partir das próprias imagens e do que elas apresentam, não a partir do que suponho que elas possam significar em relação à consciência.
É claro, poderia ter adotado uma postura diferente, e vasculhado em minha memória algum mito ou conto de fadas em que uma princesa perde as mãos, certamente deve haver alguma. Mas se fizesse isso, estaria mais uma vez me distanciando da imagem do sonho, porque qualquer heroína que perca as mãos ou os pés não seria a “nadinha-que-machucou-as-mãos-no-contato-com-a-tolha-da-minie”. Essa “nadinha” não existe em lugar algum, a não ser nesse sonho!
Poderia, como disse, ter recorrido à recomendação clássica de Jung, de tomar o sonho como uma compensação à atitude unilateral do ego. Para isso, deveria ter esclarecido uma série de dados objetivos sobre a paciente. Entretanto, acredito que para sustentar uma postura imaginal, não preciso fazer isso, pelo menos num primeiro momento, justamente para evitar o vício da interpretação hermenêutica que facilmente atribuiria sentidos universais aos elementos do sonho, e impediria que vocês me acompanhassem no trabalho com as imagens como propus aqui.
Desta forma, assumo minha aproximação com o Jung que ofereceu argumentos teóricos em favor de uma clínica da imagem e, claro, toda escolha tem suas conseqüências, é uma declaração subjetiva, como ele mesmo dizia.
Essa escolha não é aleatória, mas fruto de uma reformulação vivida ao longo da elaboração de minha dissertação de mestrado (OLIVEIRA, 2006), defendida em maio deste ano, que representou uma espécie de iniciação, provavelmente em aspectos mais amplos do que era possível descrever naquele momento.
O sentido iniciático que se apresentou mais claramente foi do ponto-de-vista teórico, como é de se esperar num trabalho dessa natureza. Ao ler e reler os textos de Jung para fundamentar minhas idéias sobre o tema central da pesquisa, constatei que diante da vastidão de sua obra, diferentes leituras podiam ser empreendidas.
Nesse percurso me distanciei do Jung da clínica da amplificação ou da clínica da compensação, e também da clínica da individuação do ego, fui em direção à clínica da individuação da imagem, como Hillman propõe.
Então, a pergunta que não quer calar: serei eu ainda uma junguiana? Não me preocupo mais em encontrar a resposta para essa questão. Vamos tratar esta questão como uma imagem! Por hora, me ocupo de dar testemunhos de como faço a minha clínica. Afinal, é só falando aos nossos pares sobre nossa prática que podemos nos ouvir e perceber o que nos sustenta em termos teóricos, o que espero ter feito, pelo menos um pouco, na companhia de vocês essa noite.
Santina Rodrigues
Fonte: Artigo postado no Blog: Himma: Estudos em Psicologia Imaginal - sábado, 6 de novembro de 2010
http://grupohimma.blogspot.com/2010/11/simbolo-signo-imagem-reflexoes-de-uma.html
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